A ÓPERA: ARTE TOTAL
Rodolfo Valverde
O que é ópera? Por que é uma obra de arte total? Como surgiu? E o que ela representa em nossos dias de hoje? Existem novas óperas ou somente aquelas que foram compostas no passado? Como posso gostar de ópera? São perguntas inevitáveis para um público jovem acostumado a diferentes expressões artísticas desenvolvidas através de novas mídias que resultaram de toda a evolução tecnológica dos últimos cem anos, principalmente o cinema.
Mas antes de entender o que é a ópera hoje, precisamos voltar no tempo, à Itália do fim do século XVI, quando intelectuais, poetas, músicos e aristocratas, movidos pela redescoberta do teatro praticado na antiga Grécia, procuravam recriar o seu impacto. Esse grupo, que se reunia em Florença (por isso chamado de Camerata Florentina) acreditava que a força do teatro grego estava no uso da música para expressar as emoções do drama, mas a música daquela época, caracterizada por várias linhas musicais entrelaçadas (polifonia) era inadequada para enfatizar a poesia e representar os personagens.
Sendo assim, desenvolveram uma nova linguagem musical (stile recitativo) que permitiria declamar o texto com clareza, expressar as diversas emoções (afetos) e dar voz a todos os personagens. Nascia a ópera, em que a música, a poesia e o drama se combinam e se complementam, produzindo em conjunto um gênero teatral de força, profundidade e beleza únicas.
Com a ópera, surgia uma nova era da história da arte ocidental e todas as demais manifestações artísticas e musicais foram influenciadas por ela. A ópera reinou absoluta por mais 300 anos, seduzindo públicos cada vez maiores e entusiasmados, até ser gradativamente suplantada no século XX pelo cinema.
É fácil entender o porquê. Com as novas tecnologias, as obras cinematográficas são gravadas uma só vez e transmitidas em qualquer lugar, para os mais diversos públicos, através de projetores. A ópera acontece ao vivo e, para apreciá-la, é necessário ir até o teatro onde está sendo encenada. Mas a experiência teatral também pode ser filmada e transmitida. É o que o projeto “Ópera na Tela” traz aos brasileiros: a magia e a arte soberana dos principais teatros e festivais de ópera do mundo! E o grande diferencial é que os recursos cinematográficos, embora jamais substituam a experiência ao vivo, podem oferecer ao espectador detalhes da atuação dos intérpretes, dos cenários e dos figurinos que muitas vezes não serão percebidos integralmente por quem está no teatro.
Mas qual é a diferença do cinema para a ópera? O cinema substitui a ópera? Definitivamente não, são gêneros diferentes. O cinema pode combinar todas as expressões artísticas para que o drama ganhe vida, e a música é um dos recursos utilizados. Na ópera, o drama se desenvolve e se torna vivo através da música! Na ópera, o drama, a poesia e a música são igualmente importantes e indissociáveis, somados a todas as demais possibilidades do universo teatral, como cenografia, coreografia e figurinos. A ópera é a arte total!
Precisamos voltar aos seus primórdios para entendermos como ela chegou até nós, através do teatro e do cinema. Assim como todos os principais gêneros artísticos daquele tempo, a ópera em seu nascimento era patrocinada pela nobreza. Os aristocratas inclusive utilizavam os espetáculos operísticos para reforçar sua imagem pública e seu poder político e econômico. Em rivalidade com Florença, onde as primeiras óperas foram encenadas, a corte de Mântua encomendou a seu compositor principal uma nova ópera. Só que seu “mestre de capela” era Claudio Monteverdi, um dos maiores gênios dramático-musicais da história, e a sua versão para o mito de Orfeu estrearia em 1607 (L’Orfeo, favola in musica), tornando-se de fato a primeira obraprima da ópera.
L’Orfeo narra a história de amor entre Orfeu, filho de Apolo e músico incomparável, e a bela Eurídice. Através da sua música, o semideus Orfeu consegue encantar todos os seres e objetos. Quando a sua amada Eurídice morre picada por uma serpente no dia do seu casamento, Orfeu desesperado decide ir até o reino dos mortos (Hades) para trazê-la de volta à vida utilizando somente o poder de sua música.
Mas por que o mito de Orfeu e Eurídice? Como a ópera nasce influenciada pelo teatro grego, os temas mais utilizados em seu primeiro século de existência são extraídos da mitologia greco-romana. E história de Orfeu é emblemática porque simboliza o poder transformador da música. E não é exatamente isto o que a ópera representa? Daí entendemos a atração que a história de Orfeu e Eurídice sempre exerceu nos mais diversos compositores e poetas, desde o nascimento da ópera até nossos dias.
Sim, compositores e poetas. Como arte total, drama desenvolvido através da música, a ópera necessariamente é constituída por um texto teatral (chamado de libreto), que pode estar pronto antes do músico iniciar a composição ou pode ser elaborado pelo escritor paralelamente à atuação do compositor. São várias as possibilidades de trabalho conjunto.
Mas a ópera precisa também de um espaço adequado e equipado com máquinas que permitam efeitos e mudanças nos cenários. As primeiras óperas, como L’Orfeo de Monteverdi, foram encenadas para a nobreza em salões palacianos. Foi a partir de 1637, na cidade de Veneza, que foram inaugurados os primeiros teatros de ópera abertos a um público pagante. O sucesso da ópera na cidade foi tal que, 40 anos depois, existiam nove teatros!
Em Veneza, os teatros foram equipados com máquinas que produziam os mais sofisticados efeitos de palco. Cenários e figurinos se tornaram cada vez mais exuberantes. Os cantores se tornaram celebridades, adorados por um público que vibrava com suas vozes cada vez mais preparadas tecnicamente e capazes de um canto extraordinário e virtuosístico. Foi para atender as demandas crescentes dos cantores e do público que a ópera italiana começou a se estruturar em uma sequência de recitativos, onde a ação é desenvolvida, e árias, canções em que os personagens expressam as suas emoções, refletindo sobre os acontecimentos narrados previamente.
A partir de Veneza, a ópera foi se espalhando por toda a Itália e para outras regiões, como a Áustria e a Alemanha. No século seguinte, o XVIII, a ópera italiana estava presente em toda a Europa, de Lisboa a São Petersburgo, encenada tanto em teatros da corte como em teatros abertos ao público. Era um fenômeno artístico incomparável graças à sua riqueza musical, apelo dramático e, acima de tudo, pelas vozes excepcionais dos cantores, as grandes estrelas da ópera de então.
A temática mitológica greco-romana foi sendo substituída por roteiros de fundo histórico ou por histórias fantásticas de cavalaria. Enquanto os temas históricos eram povoados por imperadores poderosos e magnânimos, rainhas, generais e membros da corte, tanto amigos como rivais, as lendas de cavalaria narravam as façanhas de um herói em busca de sua donzela amada, enfrentando as artimanhas produzidas por magos ou feiticeiras.
Em seu domínio por toda a Europa, compositores das mais diversas nacionalidades se dedicaram à ópera italiana, a ponto de termos como seus maiores expoentes no século XVIII o alemão Georg Friedrich Händel e o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart. Estabelecido em Londres, Händel levou a ópera italiana de temática séria ao seu apogeu musical. Em Viena, Mozart expressou a sua grandeza e profunda compreensão das paixões humanas principalmente em óperas italianas de temática cômica (a chamada opera buffa).
A ópera bufa teve o seu primeiro grande desenvolvimento na cidade italiana de Nápoles, que naquele início do século XVIII havia se tornado o maior centro de formação de cantores, instrumentistas e compositores. Na ópera cômica, heróis, deuses e reis foram substituídos por personagens reais, vivendo situações cotidianas em que a comédia se fazia presente principalmente através de intrigas e conflitos entre patrões e empregados.
Embora a ópera italiana houvesse se tornado absoluta, uma nação resistiu à sua entrada, a França. Por questões culturais e políticas, a aristocracia francesa não cedeu aos encantos da música e dos cantores italianos. A dança era a grande atração da corte, e o teatro falado era o apreço maior dos franceses. Foi preciso que um florentino radicado na França desde a sua adolescência, Jean Baptiste Lully, consciente do gosto francês, desenvolvesse um gênero de ópera característico da corte em Paris, a tragédia lírica (tragédie lyrique), a partir de 1672.
Ao contrário da ópera italiana, a ópera francesa enfatizava a declamação em recitativo e as danças, além, é claro, da exaltação da figura do monarca, o célebre Luís XIV, conhecido como o Rei Sol. Também no uso dos instrumentos, a diferença se fazia sentir pois as óperas francesas utilizavam, além dos instrumentos de cordas (como os violinos) tão caros aos italianos, instrumentos de sopro (como flautas e oboés) e de percussão. É nas óperas de Lully que ouviremos regularmente um conjunto instrumental diversificado que passaremos a chamar de orquestra.
Ao entrarmos no século XIX, as transformações da ópera são imensas. O romantismo é a estética do momento com sua ênfase nos amores impossíveis e trágicos, na liberdade individual e na procura de um mundo idealizado. As paixões se tornam mais intensas, assim como os teatros e as orquestras se tornam maiores.
As vozes dos cantores precisam se projetar por espaços mais amplos e acima de orquestras com um número maior de instrumentos, que também se modificaram através de inovações produzindo sons mais penetrantes. É importante lembrar que não havia microfones ou qualquer outro instrumento de amplificação. Assim, pelas novas demandas acústicas e pela temperatura cada vez mais elevada do drama, a técnica de preparação vocal se modifica e o canto começa a se afastar das linhas melódicas líricas e ornamentadas que caracterizavam a ópera italiana até aqui. As obras dos italianos Gioacchino Rossini, Vincenzo Bellini e Gaetano Donizetti são as mais representativas, na primeira metade do século XIX, desse estilo conhecido como bel canto.
É nesse contexto que surge Giuseppe Verdi, indiscutivelmente o grande nome da ópera italiana daquele século e o compositor mais executado em todos os teatros de ópera do mundo desde então. Suas primeiras óperas se desenvolvem a partir do bel canto, mas a maior preocupação do momento é fazer com que a música expressasse da forma mais fiel possível o texto, mas também as situações dramáticas e as emoções vividas pelos personagens. Verdi inicia uma profunda reestruturação da ópera, flexibilizando aquela sequência de recitativos e árias e incluindo cenas cada vez mais livres musicalmente para corresponder às exigências do drama. Neste contexto, Verdi produziu algumas das obras-primas mais duradouras da história da ópera, como Rigoletto, La Traviata, Don Carlo, Aida e Otello.
Como vocês já devem ter percebido, a ópera até aqui era principalmente italiana, a não ser pelo estilo francês que discutimos. Nas cortes e nas cidades austríacas e alemãs, assim como em diversos outros países e regiões, a ópera produzida era principalmente a italiana, cantada em italiano, a não ser por gêneros teatrais como o singspiel, que tinha diálogos falados em alemão intercalados às canções. Foi neste gênero que Mozart produziu algumas de suas obras mais ricas, como A Flauta Mágica.
Com a mesma inquietação de Verdi, fazer com que a música se moldasse livremente ao drama para expressá-lo de uma forma mais perfeita e profunda, que motivou seu contemporâneo, o alemão Richard Wagner, a fazer a maior revolução da história da música.
Uma das características que mais marcaram o século XIX foi a ênfase dos artistas em valorizar a sua cultura local, suas tradições, o que chamamos de nacionalismo. Foi nesse período que muitas lendas e contos de fadas foram anotados e publicados! Assim, inspirado pelos mitos germânicos e disposto a criar uma ópera alemã com novas características, em que a poesia, a música, a cenografia e todas as demais expressões artísticas se unissem em total liberdade para narrar a história da forma mais perfeita possível, que Wagner revolucionou o gênero. Para marcar a diferença, o compositor passou a chamar as suas óperas de drama musical. Para que tivesse um controle absoluto de todos os elementos do drama, o próprio Wagner escreveu os libretos que iria musicar, algo inédito na época. Além disso, construiu na cidade de Bayreuth, com o apoio financeiro de Ludwig II, rei da Baviera, um teatro seguindo todas as características arquitetônicas que ele julgava ideais para a execução de suas óperas. Nesse teatro, pela primeira vez na história, tivemos a diminuição das luzes durante a encenação!
Neste mesmo século, Paris era a capital cultural da Europa e existiam diversos teatros de ópera. É importante saber que a revolução francesa de 1789 havia mudado profundamente a sociedade, a política, as artes e consequentemente o estilo operístico. Cada teatro encenava obras com características específicas e o mais importante de todos, a Ópera de Paris, desenvolveu um estilo grandioso, com cenários ricos e figurinos luxuosos, conhecido como grand opéra. Compositores de outros países sonhavam em encenar suas obras lá, e de fato Verdi e Wagner conseguiram, nem sempre com o sucesso que esperavam.
Em outros teatros, a óperas apresentavam diferenças quanto ao tipo de história narrada ou ao estilo, mas algo era comum a todas elas, a presença da dança. O balé sempre foi um espetáculo de eleição entre os franceses. Às vezes, quando a ópera fugia muito ao que se esperava, o resultado era um fracasso estrondoso na estreia, como aconteceu com a Carmen, de Bizet, no Opéra-Comique. Apesar de apresentar diálogos falados, e não cantados, como era a regra naquele teatro, a história violenta e trágica não era o que público estava acostumado, pois habitualmente os enredos encenados eram leves e sentimentais, muitas vezes cômicos.
O mesmo sentimento nacionalista que estava presente em Wagner estimulou compositores de outras nações a fazerem óperas em seus idiomas e baseadas em sua cultura local. Aconteceu com compositores russos, tchecos, poloneses, húngaros, escandinavos, espanhóis, ingleses e de outras regiões da Europa e das Américas. Mas em todos, de alguma maneira, estava a influência do drama musical de Wagner, a procura de uma ópera cuja história se desenvolvesse através da música da forma mais livre possível, sem interrupções ou divisões entre recitativos e árias.
E não foi diferente com os compositores italianos e franceses. Giacomo Puccini, o maior expoente da ópera italiana da geração após Verdi conseguiu combinar à perfeição os elementos de sua tradição dramático-musical com a concepção de Wagner e a grande tendência daquele momento na literatura, o realismo. Em suas óperas, a música evoca e descreve com riqueza de detalhes toda a cena que se desenvolve diante de nós.
O século XX trouxe mudanças impressionantes para a sociedade e para a cultura, basta lembramos de toda a evolução tecnológica: aviões, automóveis, gravações sonoras, cinema, televisão, internet e tantas coisas mais, uma revolução sem precedentes! Tudo mudou e, claro, a ópera também. Como arte total, ela reflete como nenhuma outra o seu tempo.
O intercâmbio crescente entre povos das regiões mais distantes do planeta, a diversidade de linguagens musicais decorrentes da globalização que caracteriza o nosso tempo, ou seja, possibilidades que parecem cada vez mais infinitas contribuíram para que a ópera tenha se tornada cada vez mais estimulante. Precisaríamos de um espaço maior do que o que usamos até aqui para falar de tudo o que aconteceu com ela nos últimos cem anos!
E a combinação da ópera com o cinema permitiu que as encenações dos principais palcos teatrais chegassem a todos, em qualquer lugar do planeta. Óperas de todos os tempos que falam a nós hoje e nos transformam com a mesma intensidade, as mesmas emoções e a mesma beleza com que falaram quando foram criadas. A ópera é eterna porque é a própria vida! A ópera é viva! Viva a ópera!